A
estratégia de acomodação na ditadura brasileira e a influência da cultura
política
La
estrategia de acomodación en la dictadura brasileña y la influencia de la
cultura política
Rodrigo Patto Sá Motta
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
rodrigopsamotta@gmail.com
Resumo
O artigo apresenta reflexões teóricas
sobre os comportamentos sociais diante das ditaduras recentes e sobre as
estratégias de dominação dos regimes autoritários, com ênfase para o caso
brasileiro. Dialogando com a historiografia dedicada ao fascismo europeu dos
anos 1930/40, o texto propõe uma tipologia (adesão, acomodação e resistência)
capaz de iluminar as relações entre os meios universitários e a ditadura
militar brasileira. Além disso, argumenta-se que acomodação é parte da cultura
política brasileira e que esse caminho de ação explica algumas características
da peculiar transição pós-ditatorial, bem como certos impasses do momento
atual.
Palavras
chave
Ditadura; cultura política;
acomodação; repressão; resistência
Resumen
El artículo presenta reflexiones
teóricas sobre los comportamientos sociales durante las dictaduras recientes y
sobre las estrategias de dominación de los regimenes autoritarios, con énfasis en
el caso brasileño. Doalogando con la historiografía dedicada al fascismo
europeo de los años 30/40, el texto propone una tipología (adhesión,
acomodación y resistencia) capaz de iluminar las relaciones entre los medios
universitarios y la dictadura militar brasilera. Se argumenta que la
acomodación es parte de la cultura política brasileña y que ese camino de
acción explica algunas de las características de la pecualiar transición pos
dictatorial así como ciertos impasses del momento actual.
Palabras
clave
Dictadura; cultura política;
acomodación; represión; resistencia
A proposta do artigo é apresentar o quadro
teórico desenvolvido no livro As universidades
e o regime militar: modernização autoritária e cultura política brasileira[1], em que estudei as políticas universitárias da ditadura e seus
impactos na comunidade acadêmica. Mais do que divulgar a discussão teórica em que
se baseou o livro, a intenção é reelabora-la a partir de outros enfoques e
leituras realizadas depois da publicação do trabalho. Interessa, em especial,
discutir o aporte que a historiografia sobre a ocupação nazista da Europa pode trazer
ao debate teórico sobre os comportamentos sociais diante de estados autoritários,
chamando atenção para o cuidado que é necessário para nos apropriarmos dela.
Essa questão foi abordada sumariamente no livro, mas é retomada agora com mais profundidade
graças a temporada de trabalho na França que permitiu pesquisar melhor a bibliografia.[2] Em suma, a ideia é contribuir para os estudos sobre as
estratégias de poder e de legitimação da ditadura brasileira, e igualmente para
as pesquisas dedicadas aos comportamentos sociais diante do autoritarismo. Quem
sabe estas reflexões serão úteis, também, para análises comparativas envolvendo
outros países que viveram situação semelhante.
Um pressuposto básico para esta análise é que
devem ser evitadas interpretações simplistas sobre as ditaduras, pois elas
impedem a percepção da complexidade das estratégias de dominação estatal.
Afinal, mesmo em situação de ocupação militar e uso agudo da violência, como na
Europa dos anos 1930/40, os aparatos estatais buscaram apoio de partes da
população através de meios mais suaves de governo. Na verdade, essa discussão implica
qualquer forma de Estado. Há uma tradição de pensamento ligada a autores como
N. Maquiavel, M. Weber e A. Gramsci que aponta o caráter duplo da dominação
estatal, baseada simultaneamente em coerção e consenso. Porém, o retorno aos
clássicos implicaria percurso teórico demasiado longo para o escopo deste
texto, por isso vamos nos restringir às estratégias de dominação dos Estados
autoritários do século XX, com ênfase no Brasil e Cone Sul.
Voltar os olhos para a historiografia dedicada
ao caso europeu importa não apenas porque ela inspirou novas análises sobre as
ditaduras do Cone Sul, mas também devido à sua apropriação por atores políticos
latino-americanos. Com efeito, antes de existir uma historiografia consolidada
sobre a Europa fascista os agentes políticos brasileiros já se apropriavam de
conceitos produzidos do outro lado do Atlântico. A utilização do par antitético
resistência x colaboração para designar os comportamentos diante da ditadura de
1964 foi quase imediata ao evento. Como se sabe, essa conceituação derivou do
domínio nazista na Europa, expressando visão dicotômica sobre as atitudes das
populações submetidas ao poder dos conquistadores alemães e de seus aliados.
Integrada à cultura da esquerda mundial, tal conceituação foi aplicada ao
Brasil pós-64 por grupos que se imaginavam diante de nova experiência fascista.
Com isso, os eventos do golpe poderiam ser inscritos em categorias compreensíveis
para a esquerda, com a vantagem de atribuir aos golpistas brasileiros o rótulo
fascista.
No
entanto, as coisas não eram tão simples.
Havia semelhanças com o contexto dos anos 1930-40, já que
o anticomunismo era a
língua franca da direita e no grupo vitorioso em 1964 estavam
representados os
herdeiros locais do fascismo. Porém, a direita fascista era
sócia minoritária
do poder e tinha atritos com outros apoiadores do regime militar, de
modo que é
inconsistente classificar como puramente fascista a ditadura militar
pós-1964. Ademais,
não houve ocupação por forças estrangeiras,
ao contrário da situação europeia nos
anos 1940, o que torna o termo “colaboração”
inadequado. É mais correto dizer
que alguns grupos participaram, apoiaram ou aderiram ao regime militar
– que
não era força externa nem resultado de derrota militar,
mas, uma construção
política considerada legítima por setores sociais
significativos[3]. Além disso, muitos comportamentos não podem ser classificados
nas opções extremas, de modo que reduzir as atitudes diante da ditadura a
resistência ou colaboração é simplificação grosseira.
No contexto europeu, a historiografia há
muito questiona a redução de todas as situações ao par dicotômico e nessa linha
tem nos oferecido sugestões de análise interessantes. Entretanto, há que
refletir sobre sua adequação ao contexto dos países latino-americanos, para
evitar apropriações mecânicas. Desde os anos 1970 alguns investigadores da
ocupação nazista vêm criticando construções mitológicas e visões simplistas
sobre o comportamento das populações derrotadas pelos alemães. No caso da
França, o trabalho de Robert Paxton (1973) inaugurou uma linha de pesquisas que
iria destruir o mito resistencialista. Esse historiador mostrou a profunda
colaboração entre as autoridades francesas e as forças de ocupação alemãs,
desencadeando uma virada na memória e também na historiografia que estuda o
tema.[4]
Na década seguinte outros historiadores seguiram
pela mesma senda, notadamente Henry Rousso, Pierre Laborie, Philippe Burrin e
Jacques Semelin[5]. Esses autores confirmaram algumas questões apontadas por Paxton,
mas, em certos aspectos, criticaram apropriações da obra daquele historiador que
geraram novas versões simplistas. O mito de uma maioria resistente ao nazismo
(e a seus aliados), com justeza criticado à luz das novas pesquisas, acabou por
alimentar um contra mito igualmente simplificador: a maioria teria colaborado
com o nazismo. Esse debate, inevitavelmente explosivo, foi acompanhado de
inúmeras polêmicas historiográficas, disputas políticas e conflitos de memória ao
longo das últimas três décadas, provocando batalhas em torno do revisionismo e da
judicialização da memória.
Importa ressaltar que a partir dessas
polêmicas foram produzidas análises mais sofisticadas e menos dicotômicas sobre
os comportamentos diante dos vencedores nazistas. Nessa linha, destaque-se a
contribuição de Pierre Laborie que, ao estudar as flutuações de opinião questionou
a versão de que 40 milhões de franceses haviam se transformado, da noite para o
dia, de colaboradores em resistentes, de petainistas em gaullistas. Para
construir seu argumento ele apontou as ambivalências presentes à época, a
complexidade do sentimento attentiste[6] e as zonas de sombra, propondo que as pessoas poderiam ser, por
exemplo, petainistas e resistentes ao mesmo tempo; acreditar que o Marechal
Petáin pretendia proteger a França e, simultaneamente, torcer pela vitória dos
aliados; e poderiam mostrar-se superficialmente de acordo com a nova ordem
enquanto escondiam seus pensamentos (às vezes atitudes) rebeldes.
Outro autor a destacar é Philippe Burrin, que
utilizou o termo acomodação para expressar as atitudes dos setores da sociedade
derrotada que não resistiram aos vitoriosos, preferindo adaptar-se ao novo
regime. Partindo do pressuposto de que tal acomodação foi voluntária, seu
objetivo foi explicar as diferentes gradações e motivos que a inspiraram,
fazendo um amplo estudo com foco em diferentes setores da sociedade francesa,
desde políticos a empresários, passando por intelectuais e artistas. Para
Burrin, quatro elementos motivaram a acomodação com a ordem nazista: a sensação
de constrangimento, o interesse material, a complacência pessoal e a conivência
ideológica. Embora se reconheça a qualidade e a contribuição original do seu
trabalho, uma das críticas à categoria acomodação de Burrin é que ela não se distingue
bem de colaboração. O leitor fica em dúvida sobre os limites entre os comportamentos
de acomodação e de colaboração, se eles seriam efetivamente duas categorias
distintas ou, na essência, o mesmo fenômeno.
Chama a atenção na historiografia dos anos 1980
e 1990 a tendência a relegar a segundo plano as ações de resistência, decerto
um desdobramento da recusa ao mito resistencialista. Mesmo em um trabalho que
foge a essa tendência, como o de Jacques Semelin (Sans armes face à Hitler, la
resistance civile en Europe), o propósito foi enfocar um tipo de resistência
não convencional, a chamada resistência civil. De qualquer modo, o autor
contribuiu para manter o tema da resistência em debate e propôs uma tipologia
mais ampla para classificar as atitudes da população civil diante dos
ocupantes: colaboração, acomodação ou resistência.[7]
Como foi dito, tais pesquisas têm sido
inspiradoras para pensar as relações de dominação e o comportamento político no
quadro das ditaduras latino-americanas. Em especial, elas estimularam a
questionar os mitos sobre a resistência e a pesquisar o fenômeno do apoio e do
consentimento aos Estados ditatoriais, o que amplia a compreensão sobre as
bases sustentadoras do poder autoritário.[8] No entanto, sua apropriação deve ser cuidadosa devido às já
mencionadas diferenças de contexto, pois, além da ausência de ocupação
estrangeira, a direita que subiu ao poder no Cone Sul nos anos 1960/70 tinha
composição ideológica diferente do bloco fascista dos anos 1940, notadamente
devido à influência marcante do liberalismo.
Voltando a atenção para o caso brasileiro, e
à pesquisa sobre as universidades sob a ditadura, a proposta foi utilizar a
tríade adesão, resistência ou acomodação para classificar as relações entre o
Estado autoritário e os meios acadêmico-científicos. Em outras palavras, defende-se
que essa tríade resume as principais atitudes da comunidade acadêmica diante da
ditadura erigida em 1964. Algumas pessoas e instituições promoveram ações que
podem ser classificadas em dois ou nos três tipos, em momentos diferentes ou
simultaneamente, de modo que o “ou” em alguns casos foi “e” (por exemplo,
resistência e acomodação).
A preferência pelo termo adesão no lugar de
colaboração deve-se a razões já apontadas. O golpe de 1964 não derivou de
derrota e ocupação estrangeira, ainda que o apoio da potência norte-americana
tenha sido essencial. Ele foi um levante liderado pelas forças de direita que contou
com apoio de parte da sociedade (especialmente nas classes média e alta), em luta
contra processo de mudanças sociais de viés esquerdista que estava acontecendo
durante o governo de João Goulart. E houve muitas adesões à ditadura no mundo
acadêmico, que recrutou ali importantes quadros políticos e técnicos que
serviram aos sucessivos governos militares.
Quanto à resistência defende-se o uso da
mesma expressão, embora algumas de suas características tenham sido diferentes
em relação ao contexto europeu. Mesmo assim, no presente caso também se pode conceituar
resistência como conjunto de atos de recusa coletiva ao poder instituído, que
podem se expressar de diferentes maneiras.[9] Nos espaços universitários houve inúmeras ações de resistência,
na maioria protagonizadas pelos estudantes como passeatas, paralisações de
aulas e divulgação de produtos culturais censurados; e também atos mais agudos
como as ocupações de edifícios, sem esquecer que muitos estudantes foram recrutados
por organizações armadas (embora com atuação fora dos campi).
O aspecto mais original e polêmico do
trabalho foi analisar as estratégias e os jogos de acomodação envolvendo a
ditadura e os meios acadêmicos. Comecemos discutindo a peculiaridade do uso do
termo acomodação frente à conceituação produzida pela historiografia europeia. Embora
na época da produção do livro (As
universidades e o regime militar) desconhecesse o trabalho de P. Burrin, as
reflexões sobre acomodação partiram de questão semelhante: como se comportaram certos
segmentos sociais submetidos a regime autoritário? Porém, acomodação no caso
brasileiro tem duas singularidades que implicam conceito diferente. Primeiro,
ela integra o repertório da cultura política brasileira, portanto, não é
produto de situação autoritária episódica. Segundo, a acomodação não foi
somente uma maneira de adaptar-se à ditadura: tratou-se de jogo de mão dupla,
que envolvia o Estado e o mundo acadêmico/científico. Voltaremos a esse ponto
logo adiante, para esclarecer melhor a ideia.
Faz-se necessário apresentar sumariamente o
que se entende por cultura política brasileira e seu elemento chave, a
acomodação, antes de abordar sua incidência no período ditatorial. Cultura
política seria um conjunto de representações, valores e padrões de
comportamento político comuns a determinado grupo, sem que isso signifique qualquer
forma de atavismo. O campo da política supõe o protagonismo de agentes que
fazem escolhas: há sempre margem para a opção entre diferentes caminhos de
ação. O argumento é que as escolhas podem sofrer a influência da cultura
política, que oferece aos agentes alguns padrões de ação já inscritos nas
tradições, mais atraentes e viáveis por terem gerado sucesso em ocasiões
anteriores. Assim, não há porque supor oposição entre a influência de padrões
culturais e a escolha dos agentes políticos. A cultura política indica caminhos
e estratégias com maiores chances de sucesso que, por isso, podem tornar-se opções
interessantes para os agentes envolvidos. Embora a cultura política implique
relações sociais, valores culturais e imaginários estruturados, portanto, bem
enraizados na sociedade, isso não significa que mudanças sejam impossíveis.
Aliás, a grande crise que o Brasil vive hoje talvez seja um marco para mudanças
estruturais na cultura política.
Há que lembrar alguns precursores do debate
sobre a cultura brasileira: G. Freyre, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, J.
Honório Rodrigues, R. DaMatta, ensaístas argutos, mas às vezes defensores de
posições conservadoras que certamente descarto. Mesmo assim, eles elaboraram insights interessantes para pensar a
cultura política brasileira, ao apontar temas como o patrimonialismo, a
cordialidade, o paternalismo, o personalismo, a flexibilidade, a ojeriza a
conflitos e a busca de integração, e a conciliação. Desse conjunto gostaria de
destacar dois elementos: a conciliação e o personalismo. No caso do
personalismo, trata-se da primazia dos laços pessoais em detrimento de relações
impessoais. Trocando em miúdos, na sua atuação política os brasileiros
privilegiariam a fidelidade a laços de parentesco, amizade, compadrio ou
patronagem à revelia de normas universais, com baixa adesão a projetos
políticos impessoais.
Evidentemente,
todos esses elementos estão
ligados à sociedade patriarcal e escravista nas origens do
Brasil, o que gerou
concentração do poder em ínfima elite,
restrições de acesso à cultura e
educação
e ausência de democracia no Estado e nos espaços sociais.
O fim da escravidão,
a República e outros processos de mudança posteriores
não lograram romper
totalmente com os problemas originais. Seguiram influentes o
clientelismo, o
elitismo, o patrimonialismo, a frágil
identificação dos cidadãos com as
instituições (em especial os partidos), o pouco
apreço e a escassa participação
nos espaços públicos. E também a baixa
adesão/respeito às normas
institucionais, percebidas como ilegítimas, e a busca de
alternativas para
driblar o sistema legal. Ressalte-se que a fraca
participação popular na
política institucional não significa ignorância, ao
contrário, por vezes ela
revela a percepção de que o universo da
“grande” política exclui os setores
sociais subalternos.
Aliás,
a exclusão política dos setores
populares era e é um objetivo permanente dos grupos dominantes,
que para esse
efeito usaram não apenas a repressão, mas também
estratégias sutis de
negociação, de conciliação ou
acomodação. Nosso argumento é que aí
está a
origem dos jogos de acomodação, que se tornaram
tradicionais e integrados à
cultura política. O medo dos escravos e o fantasma do
haitianismo explicam as
estratégias de acomodação política dos
grupos dirigentes brasileiros no século
XIX, a começar pela peculiar negociação do
processo de Independência (com o próprio
Estado português, a que se pagou uma indenização),
a manutenção da unidade das
ex-colônias portuguesas (uma façanha baseada em
violência e acordo) e até
outras acomodações posteriores, chegando ao processo de
criação da República
sem povo de 1889. Nas décadas seguintes ocorreram novos jogos de
acomodação,
inclusive durante a ditadura, como será discutido logo a seguir,
e também em
anos recentes, como será abordado na conclusão.
Antes de retornar à ditadura mais recente, um
último comentário. Os ensaístas que primeiro refletiram sobre o tema tenderam a
privilegiar o termo conciliação, enquanto nesta proposta de análise a
preferência é por acomodação. As duas expressões têm sentidos próximos e
sugerem a ideia de acordos, negociações e flexibilidade. Mas há algumas
peculiaridades que gostaria de destacar. A preferência por acomodação no lugar
de conciliação é porque o primeiro termo permite expressar sentidos mais
amplos. A conciliação na tradição brasileira significa o acordo político
realizado nas altas esferas do poder, envolvendo os grupos dirigentes do
Estado. Acomodação, tal como é utilizada aqui, permite integrar esse sentido e
incluir também arranjos realizados em outros espaços sociais e institucionais
com envolvimento de outros atores, como acadêmicos, cientistas, intelectuais e
produtores culturais.[10] Como será mostrado adiante, acomodação permite expressar melhor a
ideia de que mesmo em uma ditadura houve oportunidades para acomodar
intelectuais e acadêmicos do campo oposicionista, em um jogo de mútuas
concessões entre Estado e atores sociais.[11] Portanto, um aspecto importante da acomodação é que ela envolve
os dois campos; para o jogo funcionar, há que existir uma via de mão dupla,
embora se trate de situações de poder assimétricas.
Voltemos nossos olhos, agora, para o tema das
relações entre a ditadura e as universidades. O objetivo do trabalho era
entender o processo de modernização conservadora/autoritária da ditadura na
área do ensino superior e da pesquisa. O argumento é que a modernização/reforma
das universidades durante a ditadura (que conheceram enorme expansão de quadros
e de recursos[12]) estava conectada a dois objetivos: a) o sucesso do projeto
autoritário, pois a modernização universitária era peça importante nos planos
desenvolvimentistas da ditadura; b) a estratégia de acomodação, com a tentativa
de seduzir a elite acadêmica/científica por meio do aumento dos investimentos nas
universidades e da redução da repressão.
Durante a ditadura militar brasileira, para
os dirigentes e demais membros da comunidade universitária houve possibilidades
intermediárias entre aderir ou resistir. Muitos procuraram maneiras de se
acomodar ao novo sistema de poder, sem que isso significasse, a seus olhos,
qualquer compromisso com o regime militar. Pessoas que não desejavam aderir,
por não partilhar os valores dominantes, mas que também não tinham intenção de
resistir frontalmente ao Estado autoritário – por medo da punição ou por achar
inútil –, buscaram estratégias de conviver com ele, inclusive como forma de
reduzir os efeitos da repressão. Do seu ponto de vista, tratava-se de explorar
possibilidades abertas pelo próprio regime militar, usando-as com o objetivo de
atenuar o autoritarismo.
Alguns
pesquisadores já notaram a ambiguidade e a ambivalência de certos personagens
diante da ditadura.[13]
Entretanto, é necessário perceber que a acomodação, tal como está sendo
analisada aqui, implicava via de mão dupla, ou seja, o Estado também era
ambíguo. Alguns agentes sociais (no caso, líderes acadêmicos) aceitavam conviver
com o regime militar, mas este também precisava fazer concessões, de outro modo
o arranjo não seria possível. Do lado dos intelectuais e profissionais da
academia, alguns atores aceitavam a convivência com o regime autoritário e
repressor, por vezes inclusive ocupando cargos oficiais; do lado do Estado,
certos agentes toleravam a presença de intelectuais ideologicamente suspeitos
em cargos públicos, bem como arranjos para flexibilizar a repressão. Tratava-se
de jogo em que o Estado procurava atrair o intelectual/professor e este
precisava moderar suas opiniões e comportamentos. Entretanto, o Estado
igualmente cedia ao transigir com os valores do “inimigo” – por vezes
contrários aos seus – e ao permitir sua circulação, ainda que em versões fracas.
A flexibilidade estava presente nos dois lados.
A
flexibilidade que possibilitou tais estratégias de acomodação se devia, em
parte, à heterogeneidade da base de apoio do regime militar, que contava com
alas favoráveis à moderação no uso da violência. Entretanto, foi fundamental a
influência da cultura política brasileira. Os atores aceitavam colocar em
prática essas estratégias porque elas faziam parte do repertório à disposição,
com bons resultados em situações anteriores. Por exemplo, durante a ditadura do
Estado Novo, regime igualmente anticomunista, o governo também tolerou a
presença de intelectuais de esquerda no cenário público, alguns a seu serviço
direto ou indireto.[14]
Graças à
estratégia de acomodação, as iniciativas repressivas às vezes foram suavizadas
por meios indiretos, subterfúgios, negociações, arranjos, protelação burocrática.
O funcionamento dessas estratégias geralmente envolvia o estabelecimento de
compromissos pessoais, elemento também integrante do repertório da cultura
brasileira. Por um lado, a motivação para aceitar acordos decorria da presença
de laços entre os agentes envolvidos, ligações que para muitos superavam a
fidelidade a preceitos formais. De outro lado, a lealdade pessoal era
indispensável para o sucesso de acordos informais, construídos à revelia das
normas. Esse tipo de situação nem sempre foi viável, porque certos agentes não
se mostravam inclinados a compromissos, ou porque, obviamente, o regime não
estava disposto a tolerar algumas transgressões e alguns inimigos. Ainda assim,
chama atenção o número de casos em que se tentaram estratégias de acomodação, muitas
vezes com sucesso.
Vários
intelectuais perseguidos tinham contatos pessoais em posições de poder, a que
poderiam recorrer nas horas difíceis: um tio general; uma esposa parente de
governador ou de um deputado federal; um amigo de infância que se tornara
agente do SNI (Serviço Nacional de Informações); um primo que tinha amizade
estreita com influente general da reserva; um pai amigo de juízes importantes;
um parente com boas relações com o diretor do DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social); um amigo capaz de mobilizar um bispo – entre outros
exemplos colhidos na pesquisa. Cerca de metade dos entrevistados (em um total
de 50) para o livro relatou algum episódio do gênero, envolvendo a si mesmos ou
terceiros. Era natural e conforme aos costumes do país recorrer às relações sociais
naquelas circunstâncias e muitos dos que tiveram a chance fizeram-no. Parentes
e amigos ajudavam os perseguidos mesmo discordando de suas ideias, por entender
que o vínculo pessoal falava mais alto que considerações político-ideológicas.
Não é
possível detalhar os casos de acomodação analisados no livro, ressaltando que
foram registrados não apenas em entrevistas como também na documentação dos
órgãos de informação. Vejamos sumariamente alguns exemplos, com o objetivo de esclarecer o argumento. Em algumas
instituições, houve acordos para a escolha de dirigentes de universidades e entidades
científicas que fossem aceitáveis tanto para a ditadura como para os meios
acadêmicos. Em meio aos expurgos de docentes foram feitas negociações para evitar
algumas demissões, de modo que alguns quadros esquerdistas permaneceram em seus
postos. De maneira parecida, houve arranjos para permitir a contratação de docentes
bloqueados pelos órgãos de informação, resultando em que o expurgo da esquerda
nas instituições acadêmicas não foi completo. De modo semelhante, foram feitas
negociações para evitar a punição de estudantes rebeldes, sempre com objetivo
de não aumentar tensões que poderiam gerar mais protestos. Acordos também foram
feitos para liberar eventos culturais e acadêmicos inicialmente proibidos, e do
mesmo modo para autorizar a concessão de bolsas a pesquisadores esquerdistas.
Um último exemplo, significativo: o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento), uma entidade de pesquisa fundada em 1969 por intelectuais
expurgados da Universidade de São Paulo, teve a sua criação mediada por
negociação com o comando militar da área.
Outro
aspecto da acomodação nos meios científicos e intelectuais deve ser destacado.
A ampliação do sistema universitário e das instituições de pesquisa abriu oportunidades
interessantes de carreira, descortinando um horizonte de expectativas positivas.
Um dos objetivos do projeto era exatamente empolgar as lideranças acadêmicas e
afastá-las da contestação radical. Muitos líderes acadêmicos julgavam que seu
engajamento na reforma universitária da ditadura e na ampliação de infraestrutura
de pesquisa e pós-graduação se justificava em nome do interesse do país. Nessa
ótica, aproveitar os investimentos do regime militar e dirigi-los para fins
produtivos era percebido como forma de servir aos interesses nacionais, e não a
um governo específico. Assim, inúmeros professores que se opunham à ditadura
chefiaram departamentos universitários, laboratórios e grupos de pesquisa, e
também trabalharam em assessorias e consultorias para agências oficiais como
CNPq, Capes e Finep.
Ponto de
vista semelhante foi adotado por algumas pessoas que aceitaram cargos na
máquina do governo. Trata-se de situação realmente paradoxal: o caso de
intelectuais com origem na esquerda contratados para cargos no próprio Estado
autoritário. A situação é de fato estranha, pois muitos desses intelectuais ou
técnicos foram perseguidos nos anos iniciais da ditadura, sofrendo demissão, às
vezes prisão, tendo passaportes bloqueados e outros tipos de restrição. Quando
foram contratados – ressaltando-se que não se tratava apenas de cargos de
docência, mas de posições em ministérios e empresas públicas –, continuaram sob
a vigilância dos órgãos de informação, que algumas vezes atacaram a
“infiltração comunista” nos governos da “Revolução”.[15] É
realmente paradoxal que acadêmicos pertencentes ao campo esquerdista e
anteriormente presos pela ditadura como José Leite Lopes, Simon Schwartzman,
Hélio Pontes, José Israel Vargas, Warwick Kerr, entre outros, tenham assumido
cargos oficiais em universidades e instituições de pesquisa.
A situação
paradoxal, raiando a contradição, provoca duas perguntas: por que o Estado
contratava pessoas que considerava do campo inimigo? Por que elas aceitavam?
Pela ótica do Estado, a explicação era sobretudo o interesse em aproveitar quadros
competentes e acomodá-los em posições estratégicas. Em alguns casos, os
contratados não esposavam mais ideias radicais, porém, tampouco partilhavam os
valores do regime militar. Do ponto de vista desses intelectuais e cientistas
tratava-se de trabalhar em benefício do país, como registraram em memórias ou em
entrevistas. Além disso, às vezes aceitavam cargos por perceber a natureza
paradoxal da ditadura, que tinha figuras influentes não comprometidas com a
máquina repressiva e mobilizadas por um projeto modernizador com rasgos
“cordiais” – ou seja, mais acomodação e menos coerção. Assim, os que aceitaram
posições oficiais no período da ditadura não se consideravam cúmplices de
estratégia de cooptação do Estado, mas agentes sagazes que se aproveitavam dos
paradoxos do regime militar para produzir ações úteis e de interesse público,
como proteger colegas perseguidos ou fomentar o desenvolvimento nacional.
Aliás, desenvolvimentismo
e nacionalismo serviram de ponte a aproximar intelectuais de oposição e setores
do regime militar, que de fato se engajou em projeto desenvolvimentista, embora
de corte elitista e autoritário, como no próprio caso da modernização
universitária. Por esse caminho transitaram alguns intelectuais de oposição
como a economista Maria da Conceição Tavares, que era professora de universidade
federal e pesquisadora da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), órgão de
pesquisa do governo federal. A propósito, Tavares ofereceu uma declaração
interessante em entrevista publicada nos anos 1980:
Veja as
contradições do Estado brasileiro: você luta apoiado por estruturas do próprio
Estado. … Nós somos o único país da América Latina em que se lutou de dentro da
universidade, com dinheiro do governo, contra o próprio governo.[16]
Referindo-se
aos cargos docentes em geral e não apenas aos cargos de confiança, a declaração
da professora aponta para o viés da luta contra o autoritarismo, da
resistência. De fato, alguns professores e pesquisadores que trabalhavam em
instituições oficiais fizeram críticas às políticas do governo e participaram
de atos de resistência. Entretanto, nesse jogo havia também acomodação, já que
críticas agudas e públicas poderiam gerar ações repressivas. A essa lógica
estavam particularmente sujeitos os ocupantes de cargos de confiança. Mesmo que
não tivessem afinidade ideológica com a ditadura, os detentores de cargos
oficiais precisavam portar-se de maneira discreta, sob o risco, evidentemente,
de perder a posição. Em meio a tantas ambiguidades e paradoxos, não deveria
causar espanto o fato de, ainda assim, alguns dirigentes de órgãos oficiais
terem usado seus cargos para ações que talvez não possam ser classificadas como
de resistência, mas que, ao menos, reduziram os efeitos da repressão. Usaram a
acomodação para minorar o autoritarismo ao proteger alguns alvos da repressão.
De
qualquer modo, é importante não exagerar. Nem todos tiveram chance de usar
meios de acomodação e nem sempre essas iniciativas geraram bons frutos.
Quaisquer possibilidades de tolerância ou flexibilidade por parte de agentes do
Estado repressivo estavam limitadas pela percepção da gravidade dos atos, ou da
“periculosidade” das pessoas envolvidas. Assim, os suspeitos de pertencimento a
grupos revolucionários eram tratados com mais rigor, sendo mais difícil
estabelecer arranjos para livrá-los. Os casos de professores detidos por mais
tempo, sobretudo os que sofreram tortura, em geral envolviam suspeita de
participação em (ou apoio a) grupos revolucionários clandestinos. Importante
lembrar também que o aparato repressivo assassinou ao menos cinco docentes
universitários, entre eles Ana Rosa Kucinski, Vladimir Herzog e Lincoln Bicalho
Roque, além de dezenas de estudantes, na maioria militantes dos grupos
revolucionários.
Mas, o exercício constante da violência,
inclusive com tortura e assassinatos, não muda o fato de que a ditadura também
utilizou (ou permitiu que fossem utilizados) estratégias de acomodação para
manter o seu poder. Levar em conta essa outra faceta é necessário para um
quadro mais completo da história da ditadura, assim como para entender dilemas
presentes até hoje.
A acomodação na ditadura teve efeitos
paradoxais, que permanecem sujeitos a dúvida e debate
polêmico. Vale a
pena destacar a utilidade do conceito acomodação no lugar de outras opções
disponíveis, como cooptação, que sugere um sentido mais pejorativo. Esses
intelectuais e cientistas não foram meramente cooptados, não aderiram à
ditadura nem se colocaram a serviço da máquina repressiva. E algumas vezes
usaram seus cargos ou seus contatos para proteger pessoas perseguidas pelas
forças da repressão, contribuindo para a manutenção
de alguns intelectuais de esquerda nas instituições acadêmicas e científicas. A
propósito, devido a tal flexibilidade foram contratados profissionais de outras
partes da América Latina que fugiam da repressão em seus países. Também por aí
se explica porque foi permitida a circulação limitada de valores inspirados na
esquerda, inclusive alguns textos de K. Marx, cuja obra não foi objeto de
censura oficial.[17] Com isso, apesar dos esforços da repressão, as ideias de esquerda
se disseminaram nas universidades durante os anos da ditadura. No fim do
processo elas eram mais influentes do que haviam sido antes do golpe de 1964,
embora o comunismo estivesse em crise e superado por “novas esquerdas”, e o
marxismo fosse consumido pelos jovens em doses superficiais.
Porém, fica a dúvida sobre o resultado final da acomodação, pois,
apesar de algumas derrotas da ditadura na batalha das ideias, tais ações não
necessariamente enfraqueceram o Estado autoritário. A acomodação certamente
atrapalhou e minou o poder da ala radical da ditadura que, por isso, não
conseguiu fazer o expurgo completo de seus inimigos. Entretanto, ao mesmo tempo,
as estratégias de acomodação tornaram mais
suave para o Estado a gestão do mundo acadêmico, na medida em que reduziram as
tensões. Os jogos sutis de acomodação fortaleceram a
banda moderada da ditadura, mas não debilitaram o regime autoritário como um
todo. Em outras palavras, eles podem ter contribuído para atenuar o autoritarismo
e incentivar o lado moderado da ditadura. Mas, se de um lado isso reduzia a
violência, de outro aumentava as chances de um duradouro regime autoritário,
ainda que menos sangrento em comparação com seus vizinhos. A estratégia de
acomodação não necessariamente abreviou o retorno à democracia. Pode ter gerado
o contrário, ou seja, um regime autoritário mais duradouro.
Outro desdobramento negativo desse processo
foi facilitar para os líderes da ditadura negociar uma saída suave do poder.
Não é à toa que o Brasil é o único país do cone sul sem processos de
investigação criminal contra os agentes da ditadura. Há um elevado grau de
adesão aos acordos suaves, à bizarra ideia de anistia como perdão recíproco - consubstanciada
na lei de anistia de 1979, ainda em vigor. Com base na análise desenvolvida
nestas páginas é possível afirmar que a disposição de aceitar a acomodação
pós-ditadura foi influenciada pelos jogos de acomodação permitidos durante a
ditadura, que envolveram não apenas as elites acadêmicas e culturais, como
também parte das lideranças políticas.
* * *
* * * * *
Fundamental, portanto, perceber que a
acomodação serviu para reduzir os conflitos durante a ditadura. Um fenômeno
inscrito na cultura política, mas também uma opção dos agentes estatais e
sociais em ação no contexto. A pesquisa que gerou o livro teve como foco
central as elites acadêmico-científicas, mas, vale a pena investigar a
possibilidade de incluir no mesmo escopo teórico outros grupos sociais que se
acomodaram à ditadura, como os produtores culturais e artistas e mesmo as
elites políticas tradicionais. Tal linha de análise é importante por oferecer
compreensão menos dicotômica da ditadura, mais abrangente. Também porque ajuda
a entender os impasses da transição pós-autoritária e as dificuldades para superar
inteiramente a ditadura, o que implicaria julgar os crimes e seus autores,
identificando claramente os responsáveis.
Porém,
e retomando a análise sobre a
historiografia dedicada à Europa nazista, há que ter
cuidado com os riscos do
exagero. A crítica contra visões simplistas e
dicotômicas não deve recair no
mesmo erro, ainda que em direção oposta. Em outras
palavras, ao mostrar a
importância da acomodação o propósito
não é relegar a segundo plano as ações de
resistência. Nem todos aderiram à ditadura, nem todos se
acomodaram, muitos atores
lutaram contra o Estado autoritário utilizando-se de diferentes
meios.
Indispensável analisar de maneira equilibrada tais
fenômenos – tão complexos
como polêmicos –, com atenção também
para as mudanças ao longo do tempo, em que
ocorreram oscilações na intensidade das
ações de resistência, de adesão e/ou de
acomodação com a ditadura, e também no
comportamento de muitos atores.
No caso do Brasil, ademais, é importante
considerar que largas faixas da população mostraram-se indiferentes ou alheias aos
grandes embates políticos, o que corresponde a situação de tradicional exclusão
política. Para além da exclusão social e da pobreza extrema, e muitas vezes em
combinação com tais fenômenos, existe a exclusão política de grupos sociais
marginalizados da cidadania, inclusive do direito ao voto. Vale a pena lembrar
que os analfabetos só conquistaram o direito ao voto no Brasil em 1988. Aliás,
a estratégia de acomodação e a tentativa de evitar conflitos políticos graves
respondia exatamente ao desejo de não atrair para o cenário político esses
setores populares excluídos. Assim, para uma análise adequada dos
comportamentos sociais diante da ditadura, há que considerar não apenas os que
aderiram, resistiram e/ou se acomodaram, mas também os indiferentes e os
excluídos.
Não poderia concluir este artigo sem
mencionar o momento de grave crise política no Brasil, que traz à tona os
impasses da cultura política e o risco de novo surto autoritário. O país
encontra-se diante de conflitos semelhantes aos vividos em anos passados, com
suas instituições democráticas mostrando-se mais frágeis do que nunca. Uma
crise que consterna tanto mais porque encerrou um período positivo, em que
tivemos crescimento econômico com redução das desigualdades sociais, sob o
comando dos governos petistas. No entanto, para ter sucesso, o projeto de poder
do PT e Lula se rendeu à tradição política brasileira, depois de alguns anos
tentando mudar as coisas por meio de combate frontal. Perceberam a fraca
disposição da maioria para apoiar soluções radicais e também as possibilidades
de utilizar o personalismo em favor do projeto de esquerda. Decidiram, pois,
render-se à cultura e às tradições políticas para ter chances de ganhar as
eleições, e para ter meios de governar depois da vitória eleitoral.
Protagonizaram, assim, mais um episódio de conciliação/acomodação. Como tem
sido comum na história brasileira, o governo de Lula iniciou um processo de
mudanças ambíguo, uma espécie de modernização conservadora, mas
com a novidade de possuir um viés de esquerda.
A estratégia da acomodação tem servido
historicamente para preservar a ordem e evitar rupturas sociais, como foi mostrado.
Mas, também pode servir para abrir caminho a projetos de mudanças lentas, ainda
que isso signifique assumir certos riscos. Foi esse o caminho tentado pelos
governos petistas, ao aceitarem arranjo que integrou setores conservadores ao
governo de esquerda e manteve (ou reforçou) os piores aspectos do sistema
político brasileiro. Entretanto, fizeram-no como uma pré-condição para chegar
ao poder e realizar as almejadas mudanças sociais. Protagonizaram uma
acomodação com segmentos da classe dominante, porém, com o objetivo de gerar a
inclusão social, embora lentamente. E, de fato, os governos petistas
impulsionaram parte da agenda de mudanças sociais, apesar dos seus sócios
conservadores.
Se considerarmos que a política é a arte do
possível, ou se evocarmos a ética da responsabilidade de Max Weber, o projeto
lulista é compreensível e até aceitável. E por muito tempo pareceu funcionar
perfeitamente, trazendo benefícios aos mais pobres e implantando políticas
sociais, educacionais e culturais avançadas. Mas faltou algo aí. Se pretendia
realmente manter-se fiel à ideia de mudanças, o projeto não poderia ter se
acomodado inteiramente ao sistema político, à velha cultura política. Claro que
não é fácil mudar tradições arraigadas. Mas para que
serve um partido de esquerda? Haveria que tentar!
Faltou uma estratégia para mudar o sistema político tradicional, que as
lideranças petistas parecem ter acreditado poder controlar para sempre, à base
de fisiologismo e corrupção. Há uma responsabilidade grave do PT nesse ponto:
imaginando-se o único partido decente e representativo do povo, preferiu manter
o apoio dos outros com base na corrupção, desistindo da possibilidade de
melhorar o sistema partidário. Uma democracia pluralista precisa de partidos
representativos, consistentes, e parece que os governos petistas contribuíram
para piorar o quadro. Ao privilegiar laços baseados na corrupção o governo
montou base de apoio frágil e cavou sua sepultura, pois os “aliados”
abandonaram o barco rapidamente na hora da crise, já que não estavam ali devido
a outras convicções.
A conciliação que estava na base dos governos
petistas ruiu. Em meio a essa derrocada política o país ficou dividido entre
favoráveis e contrários ao impeachment de Dilma Rousseff, polarização que em
muitos casos se combinou com o confronto direita x esquerda. Nos meses iniciais
de 2016 viu-se o aumento espetacular dos protestos de rua, tanto de um lado
como do outro do espectro ideológico. E aprofundou-se o aumento da influência
dos valores direitistas, especialmente entre a classe média, uma tendência que
já vinha se desenhando nos últimos anos.
Nesse quadro de polarização e radicalização,
chegou-se a imaginar que a campanha pelo impeachment de Dilma Rousseff
terminaria levando a confrontos violentos. Em especial porque muitos cidadãos, notadamente
os mais jovens, vinham mostrando indisposição para acordos. Por isso, talvez
essa crise venha a ser um marco, uma quebra de paradigmas no que toca aos
comportamentos e valores políticos. Ela terá força para gerar uma nova cultura
política? Estamos presenciando a formação de uma
cidadania mais envolvida com as lutas políticas, mais visceral, mais
conflitiva? Menos tolerante com estratégias de acomodação? Será o fim da
tradicional conciliação brasileira?
É muito cedo para responder a tais questões. Além
do mais, o próprio processo de impeachment resultou de grande conciliação, que
envolveu a maioria da elite política (uma parte da qual virou às costas
repentinamente ao ex-aliado PT), as grandes empresas de mídia, o sistema
judiciário e as corporações empresariais. Todos esses grupos aceitaram que a
Constituição fosse manipulada para permitir a retirada de Rousseff do poder,
pois fingiram acreditar na tese de que ela cometeu crime de responsabilidade.
Além disso, a persistência da estratégia de acomodação aparece em algumas
tentativas do governo de Michel Temer para arrefecer os ânimos da oposição, com
base na reiteração do discurso tradicional de que os brasileiros não são dados
ao ódio político. Além do discurso, alguns gestos do novo governo indicam a
tentativa de acomodar-se com setores da oposição. Acordos parecidos aos que vimos
sob a ditadura ocorrem hoje na área da cultura e na gestão de algumas entidades
científicas, com líderes aceitando trabalhar para um governo espúrio em nome de
interesses maiores.
Veremos em breve se começou no Brasil uma
fase de conflitos políticos mais intensos ou se os ânimos vão ser arrefecidos
por meio de novas conciliações. Tomara que não! Pois a acomodação significa reduzir
os confrontos, mas também postergar a solução dos problemas. Além disso, no
presente momento ela interessa especialmente à consolidação do governo de
Michel Temer, que é fruto de um espúrio processo de impeachment.
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Recibido: 28/05/2016
Evaluado: 27/06/2016
Versión Final: 24/07/2016
[1] Rodrigo Patto Sá
Motta. As universidades e o regime
militar: modernização autoritária e cultura política brasileira, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2014.
[2] Entre janeiro e
junho de 2016 fui professor visitante do IHEAL, ocupando a Cátedra Simón
Bolivar. Agradeço a Olivier Compagnon a sugestão de consultar o trabalho de
Philippe Burrin.
[3] Algumas pesquisas
de opinião feitas à época revelam esse apoio, embora os números (e sua
interpretação) sempre possam ser questionados. Rodrigo Patto Sá Motta. O golpe
de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Revista Tempo, Niterói, vol. 20, 2014:1-21.
[4] Robert Paxton. La France de Vichy, 1940-44. Paris,
Éditions du Seuil, 1974. Efeito semelhante e convergente teve o filme de Marcel
Ophuls (Le Chagrin et la Pitié), que
foi lançado no mesmo período.
[5] Henry Rousso. Le
Syndrome de Vichy. Paris, Éditions du Seuil, 1987; Pierre Laborie. L’Opinion française sous Vichy. Paris, Éditions du Seuil, 1989; Philippe
Burrin. La France
à l'heure allemande: 1940-1944. Paris, Éditions du Seuil, 1995; Jacques Semelin. Sans armes face à Hitler, la resistance
civile en Europe. Payot et Rivages, 1989.
[6] Uma expressão
difícil de traduzir, mas significa que muitas pessoas preferiram esperar os
acontecimentos a engajar-se ativamente, mesmo odiando os alemães e repudiando o
colaboracionismo. Mas, Laborie argumenta que o atentismo dos franceses se tornou
cada vez mais simpático à resistência. Pierre Laborie. L’Opinion française..., Op. Cit.,
p.313.
[7] Jacques Semelin. Sans armes face à ...,
Op. Cit., p.341.
[8] O debate historiográfico europeu contribuiu
para uma nova pauta de pesquisas no Brasil, como nos trabalhos de Daniel Aarão
Reis Filho (Ditadura militar, esquerdas e
sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 2000), por exemplo, que mostram os limites do mito
da resistência e sua manipulação nas batalhas da memória pós-ditadura. Outra
autora importante é Denise Rollemberg, tanto em textos próprios como na obra
coletiva A construção social dos regimes autoritários: legitimidade,
consenso e consentimento no século XX (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010), que
coordenou junto com Samantha Quadrat e reúne textos sobre o Brasil e demais
países do Cone Sul. Vale a pena consultar também os textos da seguinte coletânea:
Rodrigo Patto Sá Motta (org.) Ditaduras
militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Belo Horizonte, Editora da
UFMG, 2015.
[9] Conceituação
inspirada em Jacques Semelin. Sans armes face à..., Op. Cit. p.79. Ainda há muito o
que debater sobre o significado de resistência no contexto ditatorial
brasileiro. A esse respeito conferir os textos de Daniel Aarão Reis Filho.
“Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória” e Marcelo Ridenti.
“Resistência e mistificação da resistência armada contra a ditadura: armadilhas
para os pesquisadores” em Daniel Aarão Reis Filho, Marcelo Ridenti, Rodrigo
Patto Sá Motta (org.). O golpe e a
ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru, Edusc, 2004.
[10] Eventualmente, o que demandaria outras pesquisas,
podemos pensar também em jogos de acomodação capazes de envolver setores
populares.
[11] Acomodação
agrada-me também por sugerir uma interessante imagem metafórica, inspirada no
fenômeno geológico.
[12] Foram criadas
novas universidades públicas, federais e estaduais, e houve grande ampliação
dos corpos docente e discente. Ademais, foi criado um programa de dedicação
exclusiva para docentes de universidades públicas, houve aumento de salários e
do número de bolsas e a implantação de um sistema de pós-graduação.
[13] Daniel Aarão Reis Filho. Ditadura
militar, esquerdas... e Denise Rollemberg “As trincheiras da memória. A
Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974)”. In Denise Rollemberg
e Samantha Quadrat, A construção
social dos regimes autoritários..., Op. Cit., p.97-144.
[14] Aqui
vale lembrar os trabalhos de Sérgio Miceli (Intelectuais à brasileira.
São Paulo, Companhia das Letras, 2001) sobre “cooptação” de intelectuais pelo
Estado nas primeiras décadas do século XX. No entanto, a perspectiva teórica
adotada neste trabalho é diferente, baseada no conceito de acomodação.
[15] Como
no episódio da lista publicada pelo Ministro do Exército general Sylvio Frota,
em novembro de 1977, no contexto de disputas internas à ditadura. A referida
lista continha nomes de 97 servidores públicos federais acusados de serem
comunistas.
[16] Disponível em: http://www.canalciencia.ibict.br/notaveis/txt.php?id=38. [Consulta: 17/05/2011].
[17] A censura proibiu
obras de marxistas revolucionários, como Lenin, Mao e Guevara, mas não os
livros do próprio K. Marx (que teve alguns textos vendidos em bancas de revista
a partir de 1974). O discurso oficial era anticomunista, mas não
necessariamente antimarxista, entre outras razões porque não se pretendia ferir
a sensibilidade de aliados liberais e para não oferecer uma prova cabal de que
havia censura à liberdade de pensamento.